terça-feira, agosto 19, 2008

Entrevista ao Professor Jorge Miranda - parte 2/3

"Nunca soube nem quis saber [porque fui saneado pelo MRPP], prefiro ignorar."

Lembra-se onde estava no 25 de Abril?

Lembro-me perfeitamente. Era uma quinta-feira, eu não tinha aulas de manhã, só tinha à tarde, e estava em casa a preparar a minha tese de doutoramento. A minha mulher tinha saído para o tarde e, ainda não eram 10h30, chegou a casa dizendo: o serviço está fechado, há uma revolução. Eu não sabia de nada. Só depois soube o que se passava. Nós morávamos na estrada da Luz e era muito perto da Pontinha, onde era o comando da revolução. E, portanto, tinham desligado os telefones. Ouvi a rádio e percebi logo o que era. Decidi logo: vou para a rua. Saí de carro até casa dos meus pais, que era na Rua Pinheiro Chagas, no último quarteirão antes de se chegar à Marquês da Fronteira e à Duque d’Ávila.
Portanto, muito perto do quartel-general e estava tudo ocupado pelos soldados. Estacionei e disse aos soldados que ia visitar os meus pais e deixaram-me ir. Saí com o meu pai, também com muita alegria, e fomos até à baixa, até ao Rossio. No Rossio vimos a passagem da coluna do Salgueiro Maia.

E foi até ao Largo do Carmo?

Não, não. A minha mulher estava grávida e pediu-me que não entrasse em aventuras, que podia haver qualquer coisa e passei o resto do dia entre minha casa e a casa dos meus pais.
Depois do 25 de Abril, eu fui membro fundador do PPD – Partido Popular Democrático – e, quando foi criada a comissão da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte, fui designado como membro dessa assembleia. Foi uma comissão extremamente importante porque organizou as eleições, fez uma legislação completamente nova, desde o recenseamento até ao apuramento, garantindo a autenticidade do acto eleitoral, coisa que não existia em Portugal. A experiências histórica desde o século XIX era de fraudes eleitorais. Fizemos uma lei que, no essencial, é a base de toda a legislação que vem até agora. Sufrágio universal, maiores de 18 anos, de ambos os sexos, incluindo analfabetos, admitindo até, em certas condições, votos de emigrantes, tudo em termos rigorosos.
O recenseamento foi um grande êxito, mostrando que o povo português queria realmente as eleições. Depois houve os problemas do 11 de Março, a questão de saber se existia ou não eleições, a grande intervenção do general Costa Gomes, os partidos tiveram que aceitar a plataforma de acordo constitucional. Eles esperavam que, havendo eleições, se criasse uma legitimidade democrática que se sobrepusesse à legitimidade revolucionária. Os homens do Partido Comunista pensavam que podiam fazer em Portugal o mesmo que Lenine tinha feito na Rússia, que era dissolver a Assembleia Constituinte. Foi nessas condições que a Assembleia Constituinte abriu, numa grande expectativa, no dia 3 de Junho de 1975.

No dia 11 de Março refugiou-se na sede do PPD, onde reencontrou Mota Amaral...

Foi um dia de grande preocupação, porque não se sabia muito bem o que estava a acontecer. Havia de facto muita tensão, mas custava a crer que um homem experimentado como o general Spínola tivesse feito uma coisa tão estúpida e tão limitada, sem nenhum êxito, como aquilo. Receava-se depois que houvesse um contra-golpe. E realmente houve, mas foi de certa maneira contido porque os militares moderados tiveram um papel importante. O general Costa Gomes num papel arbitral. Os partidos aceitaram um momento de compromisso. Aceitaram as nacionalizações e o Conselho da Revolução, em troca da realização das eleições. Houve uma aposta. Havendo eleições, a legitimidade democrática impõem-se, portanto vale tudo desde que haja eleições. E realmente foi o que aconteceu.

Quando entrou na Assembleia Constituinte suspendeu as suas funções na faculdade?

Não, nessa altura eu estava saneado. O MRPP tomou o poder aqui na faculdade, em finais de 1974, e saneou todos os professores, primeiro, e metade dos assistentes, depois. Eu fui um dos saneados.

Qual foi o motivo que apontaram para isso?

Nunca soube nem quis saber, prefiro ignorar. Só posso dizer que esse dia, em que me disseram que tinha sido saneado, foi um dos mais tristes da minha vida.

Tão triste como o dia em que o seu irmão morreu?

Não tem comparação, mas também foi um dia muito triste. Mas eu já estava, e continuei, a dar aulas na Universidade Católica, mesmo durante o período da Assembleia Constituinte.
Depois, quando a situação se normalizou, já em princípios de 1977, voltei para a faculdade. Agora, quando metade dos assistentes foram saneados, os restantes, por solidariedade e por dignidade, também saíram. Durante um ano foi uma grande balbúrdia e a faculdade demorou muito tempo a recompor-se desse episódio.

E qual foi a posição dos alunos?

Por um lado, vivia-se um período muito conturbado no país, por outro, eles prometeram passagens administrativas, notas de apto e não apto, não-notas. E nas assembleias-gerais de alunos havia muitos constrangimentos porque não se podia reagir contra quem conduzia toda a situação, de maneira que os alunos, num primeiro ano, aceitaram. Depois, no fim de 1975, eles perceberam que eram os principais prejudicados e o MRPP foi afastado do poder.
Foi um ano de poder do MRPP. Aquilo foi quase a sede nacional do MRPP.

O que se lembra do primeiro dia da Assembleia Constituinte?

Começou à tarde, com uma sessão solene com o Presidente da República, o general Costa Gomes. No dia seguinte, os trabalhos começaram normalmente e a primeira coisa a fazer era o regimento da assembleia, onde eu intervim e apresentei uma proposta. Também aí houve um confronto entre os partidos democráticos e o PCP, porque a Assembleia Constituinte, segundo a Lei Constitucional 3/74, não tinha poder legislativo. Mas, a assembleia assumiu o poder de fiscalização dos actos do governo, embora de forma moderada. Através de um período antes da ordem do dia, em que eram discutidos os problemas do país, e através de requerimentos ao governo pedindo informações. Também houve uma grande clivagem com o PCP, que não queria isso, queria que a Assembleia Constituinte fosse só constituinte. Esse período antes da ordem do dia foi importantíssimo de intervenção da Constituinte no processo político que decorria fora. Depois, estive também na Comissão de Sistematização do texto constitucional e em mais duas: a quinta comissão que preparou a organização do poder político e, no fim, na comissão de redacção. Isto para além do debate no plenário.

Dentro das pessoas que participaram nas discussões, quem eram os seus principais opositores?

A Assembleia Constituinte tinha pessoas de grande qualidade em praticamente todos os partidos. No PPD havia Barbosa de Melo, Alfredo de Sousa, Mota Pinto, Pedro Roseta, Helena Roseta, Cunha Leal, Olívio da Silva França, havia um grupo de universitários importantes, mas também havia advogados e personalidades da antiga oposição ao regime. No Partido Socialista havia, por exemplo, Miller Guerra, Sophia de Mello Breyner, Romero Magalhães, José Luís Nunes, Sotto Mayor Cardia. No CDS havia Freitas do Amaral, Amaro da Costa. No PCP havia Vital Moreira, Manuel Gusmão. No MDP, José Tengarrinha.
Tudo isto para dizer que era uma assembleia com muitas personalidades importantes da vida cultural, intelectual, universitária e cívica do país.

Com todos estes nomes, como encara o facto de o apelidarem de “pai da constituição”?

É nitidamente um exagero. Naturalmente que uma constituição é uma obra colectiva. Não nego que tive um papel importante, modéstia à parte, mas muitas outras pessoas também tiveram. É nitidamente um populismo que não corresponde à verdade. Sempre tenho dito isso mesmo.
Por exemplo, Barbosa de Melo teve uma participação muito importante. José Luís Nunes, Vital Moreira...

Como é que era a sua relação com Vital Moreira, visto que ele era do PCP?

Eu não o conhecia antes da Constituinte, e tive relações boas com ele. Naturalmente que, no plenário, sobretudo na altura do “verão quente”, havia combates acesos. Mas, pelo contrário, na quinta comissão e, mais tarde, na comissão de redacção, havia muito mais cordialidade que no plenário. Mas criámos, posso dizer, laços de amizade.

Que ainda duram?

Naturalmente que sim. Até fiz parte do júri das provas de doutoramento dele. Tenho relações de amizade com ele.

Costumam fazer encontros de ex-deputados da Constituinte?

Muito episodicamente, só em comemorações dos 25, dos 20 ou dos 10 anos da Constituição. De resto não tem havido. Foram todos às suas vidas. As pessoas que estavam na Constituinte não eram políticos profissionais. Alguns ficaram, mas a grande maioria não. As pessoas iam para lá com sentido cívico num momento histórico determinado.
Eu, por exemplo, e Vital Moreira, Barbosa de Melo, Mota Pinto, nunca tencionamos fazer carreira política. Alguns estiveram mais tarde na política, Mota Pinto chegou a primeiro-ministro, mas em determinadas circunstâncias. Não era, propriamente, um político profissional. O carreirismo que há hoje não havia nessa altura. Foi um momento empolgante de construção da democracia.

Houve algum momento em que tenha pensado que não era possível fazer a Constituição?

Houve momentos particularmente difíceis. Por exemplo, em Julho de 1975, quando o MFA apresentou o chamado documento da “Aliança Povo/MFA”, que apontava para um poder popular. Mas a Assembleia Constituinte reagiu denunciando esse projecto.
Foi também um momento difícil quando o MFA criou o Directório, constituído por Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho, e que não funcionou, felizmente.
Mas o momento mais difícil, embora não estivesse em causa, nessa altura, a Constituição, porque as coisas já estavam completamente ganhas, no sentido de se fazer uma Constituição e de existir uma democracia em Portugal, foi quando se deu o sequestro da Assembleia Constituinte de 12 para 13 de Novembro de 1975. Foi um momento muito difícil porque estivemos fechados na assembleia durante 24 horas, sem alimentação e não se sabia o que podia acontecer. Foi um momento muito dramático. Durante a tarde, eram dezenas de milhares de trabalhadores, não quero dizer que estavam manipulados. Em determinada altura, alguns chegaram a entrar no Palácio de S. Bento. Veio o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, eu vi-o a poucos metros a dar aquele célebre grito.

Como se sentiu a ser considerado quase como um inimigo pela população?

Foi uma coisa triste, mas fazia parte da luta. Nós estivemos lá, acho que com dignidade. Quando saímos, fizeram-nos passar por uma humilhação. Porque, quando saímos depois das negociações... Houve uma fase, durante a noite, em que uma companhia da polícia, da GNR ou do exército teria afastado os manifestantes, porque estavam muito dispersos, mas não aconteceu. Na manhã seguinte, houve umas negociações, que não sei bem como foram, ao nível do Presidente da República e do Copcon, e depois saímos, ao princípio da tarde. Foi uma humilhação porque eles fizeram duas alas e fomos em fila indiana até meio da Rua de S. Bento.
Há também uma imagem, que passou na televisão, com os deputados do PCP com punho erguido a serem saudados. São factos históricos que convém não esquecer.

Mas estiveram as 24 horas sem alimentação?

Sim. Lembro-me que, quando cheguei a casa, por volta das 16 horas, comi um enorme prato de bacalhau, estava com uma fome...
Um pormenor interessante. No dia anterior, o plenário do dia 12 de Novembro era para discutir matérias financeiras e orçamentais e eu, que não sou um especialista nesses temas, almocei com o professor Sousa Franco num restaurante chamado Celta, na Gomes Freire, não sei se ainda existe. É um restaurante perto da sede do PPD. Ele sugeriu-me várias propostas. Depois fui de autocarro para S. Bento e, quando este chegou ao Marquês de Pombal, a manifestação estava a dirigir-se para a assembleia. E o autocarro foi atrás da manifestação. Quando cheguei a S. Bento, entrei no palácio pedindo licença aos manifestantes para me deixarem passar. E depois já não me deixaram sair.
A sessão correu normalmente, as minhas propostas até foram aprovadas. Ás 20 horas, quando acabou a sessão, reparámos que já não podíamos sair.

Como foi o seu percurso dentro do PSD até à saída?

Essa altura é uma longa história. Porque Sá Carneiro adoeceu em Fevereiro de 1975, foi para Londres tratar-se, e, em Maio, veio a Lisboa dizer que não estava em condições físicas de continuar a exercer o seu cargo. Fui uma das poucas pessoas que foi esperá-lo. Então, o Conselho Nacional do PPD teve que escolher um secretário-geral interino e, depois de várias discussões, foi escolhido Emídio Guerreiro, que era um homem da luta contra a ditadura, um homem bastante à esquerda, mas um homem extremamente corajoso, e foi extremamente corajoso em todo esse período do “verão quente”. Teve um papel muitíssimo importante a que deve ser prestada justiça. Em Setembro, já Carneiro recuperou as forças, voltou e, naturalmente, retomou as suas funções no partido. Mas, aí, começou a abrir-se uma clivagem entre Sá Carneiro, que vinha com uma posição bastante radical em relação aos militares e, até, de contestação de muitas das soluções que o PPD tinha assumido durante esse período, e outra linha liderada por Emídio Guerreiro, com várias personalidades importantes, como Sá Borges, Vasco Graça Moura, Mota Pinto, José Augusto Seabra. Portanto, criou-se um clima de crispação que explodiu no congresso de Aveiro em 4 e 5 de Dezembro de 1975. E foi nessa altura que houve a primeira dissidência do partido, mas eu não saí. Eu fiquei bastante triste com o modo como aquilo tinha corrido, mas não saí, apesar de já não me sentir muito feliz. Achei que havia ali uma tentação populista e autoritária dentro do partido, de Sá Carneiro e dos seus apoiantes. Ao contrário do primeiro congresso que tinha corrido em clima de grande democraticidade, este acabou com posições muito extremistas, muito radicais. Eu fiquei, portanto, bastante triste mas achei que não havia razão para sair.

Quando achou que havia?

Ainda fui eleito deputado à Assembleia da República, mas durante muito pouco tempo, porque depois fui para a Comissão Constitucional. A partir de certa altura, em 1977, começou uma crise dentro do partido. Novamente com duas facções, Sá Carneiro de um lado e Sousa Franco do outro, de certa maneira. Ataques sucessivos de Sá Carneiro ao Presidente da República Ramalho Eanes, que eu não compreendia, com quem eu tinha relações de amizade e que considerava uma pessoa absolutamente séria e impoluta. Não tinha qualquer tentação ou tendência para fazer qualquer ditadura, de modo algum. Ao contrário do que Sá Carneiro chegou a dizer, falando de uma espécie de golpe peruano. A situação foi-se degradando... Felizmente eu estava fora. Como eu estava na Comissão Constitucional não tinha qualquer actividade política. Foi só em 1979, quando se deu a cisão dos chamados “inadiáveis”, houve um documento aprovado ainda em 1978 sobre “Opções inadiáveis”. Em 1979, quando houve orientações contrastantes entre a direcção do partido e o grupo parlamentar, presidido por Magalhães Mota, a respeito da proposta de orçamento apresentada pelo governo de Mota Pinto. Sá Carneiro estava contra esse governo e queria que o grupo parlamentar votasse a favor. O grupo parlamentar dividiu-se, houve uma cisão, muitas pessoas saíram e foi nessa altura que eu também saí do partido. Depois, criou-se a ASDI, em que não fui fundador, aderi, simplesmente. Mas nunca tive grandes ilusões em relação às possibilidades da ASDI. Mas acho que, mesmo assim, teve um papel importante numa certa fase. Em 1980, na campanha eleitoral de recandidatura do general Eanes, em que apoiou. Depois, houve a Frente Republicana Socialista, ligando o Partido Socialista, a ASDI e a UEDS (União da Esquerda para a Democracia Socialista). E houve um papel importante da ASDI na primeira revisão constitucional. Apesar de só ter quatro deputados, eu acho que teve um papel significativo nesse momento. O primeiro projecto de revisão constitucional foi, aliás, o da ASDI.

E como é que ficaram as relações mais pessoais com Sá Carneiro, por exemplo?

No congresso de Aveiro fiquei desiludido com ele. Eu tinha uma enorme admiração por Sá Carneiro desde os tempos da Ala Liberal, da oposição na antiga Assembleia Nacional contra o anterior regime, a PIDE, etc. Não esperava aquilo que aconteceu em Aveiro, que foi ele, a determinada altura, chegar à boca da cena do Teatro Aveirense e dizer que, se não fosse aprovado o projecto de estatutos dele, que se demitia. Nessa altura as pessoas apoiaram-no freneticamente e acabou-se a discussão, o que eu não gostei. Mas depois mantive boas relações com ele e lamentei profundamente a morte dele.

Nessa altura mudou de opinião em relação a ele?

Não fui só eu. Ele próprio reconheceu mais tarde, em Janeiro de 1976, num Conselho Nacional, que tinha ido além do que deveria, e as coisas ficaram apaziguadas.
A partir de final 1977, Sá Carneiro entrou em ruptura com Ramalho Eanes, algo que eu nunca percebi muito bem porquê, desiludido talvez. A partir daí, as coisas voltaram a agudizar-se dentro do partido, porque havia muitas pessoas que eram favoráveis ao Presidente da República. Historicamente, Ramalho Eanes teve um papel fundamental na consolidação da democracia. Foi ele que levou os militares para dentro dos quartéis. Pode dizer-se que se impôs ao Conselho da Revolução. Eu achei que era injusto o tipo de ataques feitos por Sá Carneiro.
Depois tivemos a máxima expressão na campanha eleitoral de 1980, que foi uma campanha duríssima.

Quando decidiu sair do PPD, falou com ele?

Escrevi-lhe uma carta.

Ele respondeu?

Não. Mas essa decisão custou-me muito. Foi uma grande decepção porque tinha apostado muito no PPD. Entre 1974 e 1976, posso dizer que dediquei quase dois anos da minha vida ao PPD. Quando era PPD, era social-democrata, quando passou chamar-se PSD, deixou de ser social-democrata para ser liberal-conservador.

Quando é que abandonou de vez os partidos?

Depois ainda fui deputado da ASDI, na revisão constitucional. Foi aprovada em Agosto de 1982, estive até princípios de Novembro e depois acabou. Até mesmo quando o general Eanes criou o PRD, não entrei. As minhas actividades políticas terminaram em Novembro de 1982.

Quando é que tomou essa decisão?

Era uma decisão que eu tinha tomado desde o princípio. A minha intervenção política era muito pontual, como muitas das pessoas que estiveram na Constituinte. Não fomos para lá para fazer carreira política. Aquilo que eu sempre quis fazer era uma carreira na universidade. Queria fazer o meu doutoramento, que esteve interrompido por causa de todo esse período. Retomar a minha carreira académica, era isso que me interessava.

Sente-se desiludido com a política?

Não, nem tenho essa ideia pessimista e derrotista que há no nosso país. Basta compararmos Portugal com Itália, por exemplo, com a recente vitória de Berlusconi. Acho que é a sociedade que exagera. Apesar de tudo, acho que nós conseguimos em Portugal, nestes 32 anos, fazer eleições com liberdade, com alternância, coisa que nunca tinha havido, nem na monarquia constitucional, nem na primeira república e muito menos no salazarismo. Temos um sistema de governo que funciona equilibradamente, com Presidente da República, o Parlamento. Temos as autonomias regionais e o poder local. Temos instituições fortes, como o Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça.
Os partidos têm muitos defeitos, é verdade, e hoje tornaram-se em algo dos tais carreiristas e políticos profissionais, democraticidade interna duvidosa, os dirigentes partidários impõem-se aos grupos parlamentares. Enquanto na Assembleia Constituinte eram os grupos parlamentares que tomavam as decisões a respeito desta ou daquela matéria. Agora não, são os dirigentes partidários, de fora, que impõem a sua vontade aos grupos parlamentares. Portanto, nesse aspecto, tenho tristeza. O Parlamento não é aquilo que eu gostaria que fosse. Mas o sistema democrático português não é pior do que o de outros países europeus.

Já está há quase 40 anos nesta faculdade, o que o fez regressar sempre?

Eu sempre estive interessado no direito constitucional, desde muito jovem. Depois, quando fiz o meu sexto ano, descobri que a minha vocação não era ser advogado, mas sim fazer carreira universitária. Nesse ramo, sinto-me o mais possível realizado.

Mas saiu em determinados momentos, como quando entrou na Constituinte?

Sim, mas para mim foi muito proveitoso. Para um constitucionalista, participar num plenário constituinte é uma oportunidade única, que eu não podia perder. Poucos constitucionalistas no mundo tiveram essa oportunidade.

Como foi convidado para a Constituinte?

Foi naturalmente. Modéstia à parte, eu tive um papel relevante nos primeiros tempos do PPD. Fui eleito, no primeiro congresso, presidente do Conselho de Disciplina (actual Conselho de Jurisdição). Naturalmente, sendo presidente de um dos órgãos do partido, seria candidato às eleições. Ainda para mais, sendo constitucionalista, foi perfeitamente natural e fui candidato por Braga, que é o meu distrito. Aliás, a primeira campanha eleitoral em Braga foi maravilhosa, porque houve grande dedicação. Ainda chegou a haver boicotes a diversas sessões. Houve pessoas que anteciparam as suas férias para poderem trabalhar na campanha eleitoral. Luís Marques Mendes, que era um jovem na altura, andava a colar cartazes nas ruas. Os candidatos de Braga eram muito bons, ainda conseguimos ter Eurico de Melo, Carlos Bacelar, Fernando Roriz. Foi uma campanha muito empolgante. Eu estava bastante deprimido depois do 11 de Março, porque havia o receio de que fosse criada uma ditadura militar do tipo comunista, mas a campanha mostrou que isso não era possível, que o país não aceitaria. Isso era uma coisa isolada em Lisboa, o “Portugal profundo” não aceitaria isso.
Eu realizei-me muito na Assembleia Constituinte com sentido cívico e enquanto constitucionalista. Naturalmente que a minha grande profissão é o ensino universitário. A coisa de que eu mais gosto é de dar aulas.

Foi presidente do Conselho Directivo (CD) durante dez anos...

Sim, num momento importante, de 1991 a 2001. Importante porque foi nesse período que também fiz uma realização importante que foi o alargamento e renovação deste edifício. Transformou completamente a faculdade, foi um esforço financeiro muito grande, com muito sacrifício. Depois disso apanhei arritmia. Foi um trabalho enorme. Eu tinha uma boa equipa comigo. Das coisas que me deixou mais feliz na minha vida foi ter conseguido fazer estas obras.

Este foi um edifício que inaugurou, enquanto estudante, e que depois ampliou enquanto professor.

Sim, fui da primeira turma que começou e terminou aqui a licenciatura. Mas isso é um aspecto episódico. Fui presidente do CD, duas vezes presidente do Conselho Científico. Mas isso são aspectos laterais, o fundamental é o estudo e o ensino.

Quais foram as principais dificuldades que sentiu na altura em que foi presidente do CD?

Não tive problemas nem com professores, nem com alunos. Houve um ou outro momento de crise. Obviamente que, durante dez anos, não foi tudo um mar de rosas. Mas penso que consegui, com as pessoas que colaboraram comigo, singrar razoavelmente bem, tentando serenar e resolver os problemas que iam surgindo. Houve momentos aborrecidos e desagradáveis, mas não a ponto de inquinar todo esse tempo. Os aspectos mais aborrecidos eram precisamente a negociação com o ministério da Educação para obter verbas para as obras. Mas ainda falta construir mais um bloco do edifício, para os institutos e os mestrados.

Quantos ministros da Educação é que apanhou?

Foram vários, mas as coisas até correram bem. Devo dizer que uma ministra que mais apoio deu às obras foi Manuela Ferreira Leite. Só começámos as obras em 1997, que acabaram em 2000. Mas antes disso houve toda uma série de negociações e de concursos. Tivemos também a satisfação de não ter havido derrapagem financeira e de termos conseguido poupar 700 mil contos de propinas e com isso fazer parte das obras. O PRODEP deu cerca de 1.300 mil contos e o resto foram as propinas. Acho que a faculdade está completamente renovada. Um dos dias mais felizes da minha vida foi o dia da inauguração, presidida pelo Presidente da República Jorge Sampaio.

Como é a sua relação com os alunos?

Eu acho, modéstia à parte, que é bastante boa. Evidentemente que temos alunos de vários tipos. Tenho alunos do primeiro ano, do quarto ano, de mestrado e de doutoramento. Portanto, são alunos de características bastante diferentes.

Eles vão ao seu gabinete?

Sim, eu recebo-os. Normalmente, os alunos do primeiro ano não me procuram, para além de dúvidas no fim da aula. São bastante tímidos. Os alunos de doutoramento e de mestrado, em que a maioria não são portugueses, são brasileiros. Eles procuram-me constantemente. Há outro aspecto da minha vida que é o contacto com o Brasil. Eu sinto-me particularmente feliz por ter alguma projecção no Brasil e ter laços de cordialidade com os grandes constitucionalistas brasileiros, participar em congressos.

Os alunos procuram-no por problemas pessoais?

Não muito frequentemente, mas uma vez ou outra sim.

Para além de Portugal, tem sido convidado para ajudar a redigir as constituições de diversos países?

Sim, fiz o ante-projecto de São Tomé e Príncipe e de Timor. Em relação a Moçambique dei um parecer, não em relação à constituição actual, mas à constituição de 1991.

Em relação à Constituição de Timor-Leste, como é que surgiu o convite?

Aí não foi um convite, foi um oferecimento meu.
Em relação a São Tomé foi um convite do presidente Manuel Pinto da Costa. Eu fui a São Tomé duas vezes e foi uma experiência muito agradável.
No caso de Timor, foi uma oferta minha.

O que o levou a oferecer-se?

Eu, como todos os portugueses, julgo eu, sentimos muito o drama de Timor. Nós temos um acordo de cooperação com a faculdade de Direito da Universidade de Timor. Ainda há pouco tempo dei uma aula, por videoconferência, para Timor. Infelizmente, fui convidado para ir à cerimónia de independência mas não pude ir porque foi em 2002, quando eu tinha a minha arritmia. É um sentimento de solidariedade em relação a Timor que julgo que todos os portugueses têm.

Mas foi lá depois, quando fez a Constituição?

Não pude ir. Gostava imenso de ir, mas é uma viagem muito longa, complicada.

Mas a quem é que se ofereceu?

Havia em Portugal uma comissão presidida pelo padre Vitor Milícias, para a cooperação com Timor. Cheguei a preparar a minha ida a Timor mas depois não poder ir. Assim, falei com o padre Vitor Milícias para me oferecer.

Como é que ele reagiu à sua oferta?

Muito bem.

Lembra-se da conversa?

Não, mas isso é um pormenor que não interessa.

Como é que se sente por ser tão solicitado?

Eu conheço todos os países africanos de língua portuguesa, indo a todos. Ainda há pouco tempo estive em Cabo Verde e em Moçambique. Sinto-me muito bem em todos eles. Sinto-me satisfeito enquanto português. É um dos êxitos da política portuguesa dos últimos 30 anos. Depois de guerras terríveis e de uma descolonização que não correu bem, nós, Portugal, temos com os países africanos de língua portuguesa relações muito melhores do que aquelas que têm a França, a Inglaterra ou a Bélgica com as ex-colónias deles. Eles acolhem muito bem, mas onde eu me sinto melhor é no Brasil, confesso. Até porque tenho laços familiares com o Brasil, a minha avó paterna era brasileira.

Com que frequência é que lá vai?

Normalmente, duas vezes por ano. Não vou mais porque as viagens são longas. Nunca fui em turismo, sempre em trabalho. Já fui mais de 30 vezes ao Brasil. Aproveito é sempre um dia ou outro para qualquer visita turística. Ainda agora estive em Fortaleza e foram só os dias do congresso.

Tira todos os dias de férias a que tem direito?

Para mim, é fundamental as férias em Moledo do Minho, na praia.

Nunca tirou férias noutro sítio?

Não, nunca, só em Moledo. Férias para mim são em Moledo. Só lá é que sinto em férias. Não quer dizer que não tenha feito viagens de férias, mas não substituem o tempo em Moledo. É absolutamente essencial. Aliás, em tempo de férias há duas fases: uma de completo repouso, e uma segunda em que começo a fazer leituras, a actualizar-me em livros científicos, que me interessam. Mas é completamente estar lá ou estar aqui em Lisboa.

Diz que é um minhoto emigrado em Lisboa. É lá que se sente em casa?

É lá que me sinto bem, realmente.

Que livros costuma ler? Só científico, de Direito?

Não, no período de descanso completo leio obras literárias.

Qual o livro que mais o marcou?

Vários. Mas talvez a obra literária que eu tenha gostado mais na minha vida tenha sido “A Guerra e Paz” de Tolstoi. Mas também há outros, como os “Contos” de Eça de Queirós, também acho maravilhosos, a “Sagarana”, de João Magalhães Rosa, um escritor brasileiro. Autores recentes, também. Durante o ano, não tenho muito tempo para ler obras literárias, porque eu gosto de as ler relaxadamente. Mas sempre vou lendo alguma coisa. Durante as férias tento recuperar.

Em todo o seu percurso, existe algum erro que tenha cometido e que gostasse de corrigir?

Há sempre erros, que todos cometemos. Agora, um erro fundamental, acho que não cometi. Sinto-me perfeitamente realizado na minha carreira, na família.

Quantos filhos tem?

Quatro. Um nasceu em 1972, outro em 1974 e dois gémeos nascidos em 1978. foi o período a seguir ao casamento, que foi em 1971. devo muito à minha mulher, nesse período em que estava mais envolvido na actividade política e, depois, na preparação do doutoramento. Ela também é jurista.

O facto dela ser de Direito deve ter ajudado?

Não, evitamos ter conversas de Direito. Uma vez ou outra poderá haver alguma conversa.

Os seus filhos seguiram as pisadas dos pais?

Os meus dois filhos mais velhos também tiraram Direito, os outros dois não. O meu filho mais velho também casou com uma jurista, que foi colega de curso dele.

Nenhum deles seguiu os passos do seu pai ou do seu irmão?

Tive pena de nenhum deles ter sido médico. Quando eu nasci, a minha família tinha imensos médicos. Agora quase não tem nenhum.

O que lhe falta fazer?

É difícil dizer. Ainda estou com o meu Manual de Direito Constitucional, que também é uma realização importante da minha vida, os sete volumes do manual, a actualização do manual. Aqui, o trabalho científico universitário nunca pára. Espero continuar até morrer.

Alguma vez pensou em escrever as suas memórias?

Tenho pensado nisso, não excluo essa hipótese. Se tiver tempo. Até porque conheci de perto Marcelo Caetano, Sá Carneiro, Ramalho Eanes, personagens importantes da história portuguesa. Estive na constituinte, no período revolucionário. E, portanto, acho que há coisas que devem ser contadas.

A memória só permanece se existirem registos...

Exacto, e acho que em Portugal há falta de memórias. Mas é uma coisa em que não penso por enquanto.

Nota: Esta segunda parte da entrevista (publicada parcialmente na edição de 13 de Agosto de 2008 da revista SÁBADO) foi realizada na Faculdade de Direito de Lisboa, no final de Abril de 2008.

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