terça-feira, agosto 19, 2008

Entrevista ao Professor Jorge Miranda - parte 1/3

"Sempre fui uma pessoa mais séria, mais ordenada"

Onde nasceu?

Nasci em Braga, na Avenida Central. Nasci em casa de família. Os meus pais viviam no Porto naquela altura mas foram passar a Páscoa a Braga e eu nasci nessa altura. Toda a minha família é de Braga, mas o meu pai era médico e exercia a profissão no Porto. Nasci em Braga por sorte, podia ter sido no Porto. A minha mãe era “dona de casa”, como se dizia nessa altura.

Ainda mantém alguma relação com Braga?

Já morreram os meus pais, os meus avós, mas tenho duas tias e muitos primos. Ainda tenho uma casa em Moledo do Minho e vou a Braga quase todos os meses. Tenho uma ligação a Braga muito forte. Considero-me sempre um minhoto que está emigrado em Lisboa.

Já cá está há muitos anos...

Vim para Lisboa nos meus tempos de Liceu, nos anos 50. Os meus pais vieram e eu acompanhei-os. Vim transferido do liceu de Braga para o Liceu Camões.

Como eram os seus pais?

Eram pessoas normais. O meu pai talvez mais brando com os filhos do que a minha mãe, que era mais severa. Ele era uma pessoa de tendência liberal, até num plano mais político. Com os filhos dava uma grande liberdade, embora sempre muito preocupado com a nossa educação, com a nossa escolaridade. Sempre incentivando e orientando no sentido de estudarmos bem. Essa foi sempre a grande preocupação dele.

Como foi a sua infância?

Posso dizer que tive uma infância normal, feliz, com momentos de menor e de maior alegria. Os meus melhores momentos, como para qualquer criança, eram quando ia de férias, principalmente quando ia para o Minho. Então quando ia para Moledo do Minho era um deslumbramento. A praia de Moledo já não é tão maravilhosa como era, com toda a construção, mas ainda continua a ser uma praia muito bonita. Tenho a minha afectividade lá. Todas as minhas recordações de infância e da juventude. As minhas férias em Moledo foram os meus momentos mais felizes.
Passava as férias só com os meus pais e o meu irmão. Depois havia familiares e amigos que iam almoçar lá connosco, mas a casa era só para nós.

Teve uma vida confortável, sendo o seu pai médico?

Não vivia com grandes dificuldades, mas também sem grandes abastanças. Era o Portugal dos anos 50 e 60, que não era o Portugal de hoje. As pessoas vivem bastante melhor agora.

Como era a sua relação com o seu irmão?

Foi o maior desgosto da minha vida. O meu irmão [Carlos Miranda] era médico e, não é por ser meu irmão, mas era um proeminente neurologista. Para além de ser um grande médico, era um grande humanista. Tinha também um grande sentido artístico. Era um pintor amador de qualidade. Morreu estupidamente num desastre de automóvel, com 37 anos.
O maior desgosto, o maior choque da minha vida. Foi num domingo! Estava a chegar a casa e estavam uns colegas dele a anunciar-me que ele tinha morrido. Enfim, uma morte instantânea, num desastre de automóvel. E a coisa que mais me custou na minha vida foi ir dizer aos meus pais o que tinha acontecido…

Os automóveis ainda lhe metem medo?

Ainda hoje sinto um arrepio só de pensar nesse dia. Foi em Janeiro de 1982. Foi terrível e, ao fim de tantos anos, ainda sinto muito isso. E ainda sinto muita falta dele. Há uma relação entre irmãos que é completamente diferente da que há entre outras pessoas, entre cônjuges e entre pais e filhos ou entre colegas ou amigos…
Há uma série de recordações de pequeninos, coisas que vivemos em comum, havia uma grande complementaridade entre nós: eu era um professor de Direito e ele era um homem da ciência. Havia um grande contraste entre nós os dois, de feitios e de formações culturais mas havia também uma grande complementaridade… Havia uma grande solidariedade entre nós… Foi terrível…

Fez o ensino primário no Porto?

Eu na instrução primária não fiz no Porto, mas em Braga. Os meus pais estavam no Porto mas eu estive em casa de uns tios-avós. Curiosamente, os professores que me marcaram mais foram os da instrução primária e os da universidade. Tive um grande professor no Colégio São Geraldo, que era o Sr. Gil, um didacta excelente… Há coisas que agora não se aprendem, mas que deviam, e que nós aprendemos, eu e os meus colegas. São coisas que ficam para toda a vida. O Português, por exemplo. O que eu sei foi o que aprendi até há quarta classe. Marcou-me mais este professor que qualquer outro do ensino liceal.

Quando veio para Lisboa, em que zona veio morar?

Na rua Pinheiro Chagas.

Veio para o Liceu…

Para o Liceu Camões, que comemora agora os seus 100 anos.

Como era a sua vida no Liceu Camões?

Era ir para as aulas….

Houve alguns professores que o tenham marcado?

No Liceu tive professores razoáveis, alguns melhores e outros piores, mas nenhum me marcou em especial.

E colegas, guarda algum na memória?

Tenho vários colegas ainda dessa época, mas não… A personalidade dominante do Liceu Camões era a do reitor, o Dr. Joaquim Ferro Correia, pai do professor Ferro Correia. Era um reitor considerado muito autoritário, e realmente era, mas o liceu funcionava. No sexto ano foi meu professor de filosofia e nós temíamo-lo até bastante. Nós éramos alunos de 15/16 anos e era o reitor, o autoritário. Enquanto professor de filosofia revelou-se uma pessoa extremamente amiga e, até, muito humana, conversando com os alunos. Depois, tivemos muita pena porque no sétimo ano já não foi nosso professor devido às suas ocupações enquanto reitor. Mas não houve nenhum que me marcasse seriamente. Enquanto na universidade as pessoas são mais marcadas, no liceu não.

E era um aluno bem comportado, no liceu?

Sempre fui um aluno bem comportado.

Nunca fez nenhuma tropelia de juventude?

Não, não…

As pessoas normalmente vêem-no como um “atinadinho”. Como encara esta imagem que se tem de si?

Talvez seja. Ao contrário do meu irmão, que era um pouco mais gozão, eu sempre fui uma pessoa mais séria, mais ordenada, nunca fui muito de festas e coisas assim.

Os seus pais alguma vez o repreenderem?

Não, nada …

Costumava ir ao cinema?

Ainda continuo a ir todos os domingos, a não ser que não possa ou que não haja nenhum filme que me interesse.

Lembra-se de algum filme?

Há vários grandes filmes. Eu gostava muito dos filmes de cowbois, de westerns dos anos 50 e 60. O Sociedade Aberta do Rosselini…

E actores favoritos?

Nunca fui muito de actores ou actrizes.

E hoje em dia que filmes vê?

Filmes de qualidade, de todo o género. Quer filmes históricos, românticos, policiais… Desde que sejam bons. Enquanto era mais jovem, principalmente no liceu, gostava mais de filmes de aventuras, de cowbois e de piratas. No meu tempo do liceu havia uma revista juvenil excelente que era o Cavaleiro Andante. E nós líamos com muito gosto e com muita ansiedade. Havia aulas ao sábado, no Liceu Camões, e os alunos estavam lá todos ansiosos para verem. Mas o meu pai só nos dava a revista há hora de almoço, quando voltávamos para casa.

E tinha alguns ídolos?

Não, nunca tive ídolos. Nos anos 60 gostei muito de JF Kennedy, por exemplo, quando ele foi presidente dos EUA. A morte dele foi um choque muito grande. Na Europa, admirava muito o General De Gaulle. Martin Luther King, também.

O que é que o fazia gostar de Kennedy ou de Luther King?

Era uma relação muito forte com as minhas próprias ideias políticas da democracia e da liberdade. Sempre fui, desde o liceu, uma pessoas muito voltada para a democracia e para a liberdade e nunca gostei do regime de Salazar.

Mas, quando estava no liceu, já tinha consciência do regime?

Tinha perfeita consciência. Até porque já em casa, com o meu pai, a minha mãe e toda a minha família, os tios e os avós, havia pessoas que gostavam do regime e outras que não gostavam. O meu pai era dos que não gostava do regime. Não pretendo ter qualquer glória, mas sempre fui um democrata, em toda a minha formação do ponto de vista político.

Quando conheceu a sua mulher?

Foi aqui na faculdade. Ela foi minha colega de curso. Foi progressivamente, não foi um amor há primeira vista. Começou em amizade e acabou em amor.

Eu trato-a por Magda. Ela é de Lisboa.

Foi o seu primeiro amor?

O primeiro e único amor.

Quantos anos de casamento?

Já lá vão 37 anos.

Lembra-se onde se casou e quem convidou?

Isso não tem interesse nenhum. Foi em 1971, em Braga, na Capela de Santa Maria da ???.

Nunca se quis desligar de Braga, nem sequer no casamento…

Não. Aliás, o meu filho foi baptizado em Braga.

Sendo solicitado inúmeras vezes para se pronunciar sobre questões constitucionais, como consegue ter tempo para a família?

É um equilíbrio nem sempre fácil, e muitas vezes sacrifiquei a minha mulher. Tenho consciência disso. Em certas fases, como quando preparei o meu doutoramento ou nos tempos em que estive na assembleia constituinte, e com filhos pequenos, a minha mulher é que, de certa maneira, aguentou as coisas em casa.

De onde vem este gosto pelo Direito?

Curiosamente, havia mais médicos na família do que juristas. Mas tive um avô juiz e um tio-avô advogado. Mas isso não teve nenhuma influência. Eu costumo dizer que vim para Direito por causa do Direito Constitucional, mas não foi. Eu comecei a interessar-me pelo Direito Constitucional a partir das minhas preocupações políticas de democracia, de existirem regras de organização do Estado, regras constitucionais, e, também, por gostar muito de geografia. Mas o Direito veio a seguir.

Quando é que nasceu esse interesse pela Constituição?

Muito cedo. Já no tempo do liceu me interessava. Naquela altura havia uma disciplina, no sexto ou sétimo ano, que se chamava “organização política e administrativa da nação”. Era, em grande medida, mais uma disciplina de propaganda.

Como é que sentiu no primeiro dia em que entrou neste edifício?

Eu entrei cá no ano a seguir à inauguração mas o meu curso foi o primeiro totalmente feito neste edifício. Tinha escolhido vir para Direito, tinha boas notas e, portanto, entrei aqui naturalmente.
Na altura talvez tivesse gostado mais de ter ido tirar o curso de Geografia, tinha mais curiosidade.

Porque não foi?

Não servia para o Direito Constitucional e porque também não queria ser professor de liceu, que era o que iria acontecer.

Mas teve alguma pressão dos pais?

Não. Aliás, na altura também cheguei a pensar em ir para Engenharia, porque gostava bastante de matemática. Mas tinha um problema terrível, que era o desenho. Ao contrário do meu irmão, que tinha um jeito enorme para pintar, e o meu pai para desenhar. Eu sempre fui incapaz de desenhar. Mesmo desenho geométrico nunca fazia as coisas bem. Portanto, nunca poderia fazer Engenharia. Acabei por vir para Direito.

Quando decidiu?

Na passagem do quinto para o sexto ano. Nesta altura as pessoas tinham que escolher as “alíneas”. Havia uma para Medicina, Engenharia, etc, outra para Letras, outra para Direito… E eu escolhi esta. Muito cedo, com quinze anos já tinha decidido vir para Direito.

Mas lembra-se do dia em que entrou nesta faculdade?

A minha primeira aula foi a 20 de Outubro de 1958, com o professor Boaventura.

Apanhava todos os dias o autocarro 31 com o Mota Amaral…

Eu morava na Rua Pinheiro Chagas e ele morava na residência da Opus Dei na Rua António Cândido. Vínhamos no autocarro, que passava na Avenida Luís Bívar, que era onde nos encontrávamos. Ele era dois anos mais novo que eu.

E lembra-se das conversas que tinham?

Eram de carácter geral. Já nessa altura eu não gostava muito de falar em política e ele também. Eram mais questões culturais, literárias, coisas aqui da faculdade… Mas não era a única pessoa que encontrava no autocarro. Nessa altura as pessoas não tinham automóvel. Se não me engano, quando entrei na faculdade só havia um ou dois alunos com automóvel. E até os professores vinham de autocarro.
O meu pai nem sequer tinha automóvel, nem nunca quis ter.

Foi um activista, na faculdade?

Não fui, de modo algum. Pertenci à JUC, a Juventude Universitária Católica, e à Associação Académica. Tinha funções normais, mas nunca fui um activista. Na Associação Académica, fui director de uma secção de estudos já quase no final do curso.

E na greve de 62?

Aí participei activamente. Estive em quase todos os momentos, desde o dia 24 de Março de 1962, quando começou, que era um sábado, até ao fim. Mas não fiz a greve de fome, como a maior parte dos alunos, em Maio de 62. Estive em tudo, em todas as reuniões e plenários, etc...

Como é que era o ambiente?

Havia uma imensa revolta contra o regime. Convém não esquecer que o regime tinha ficado muito abalado com as eleições de 1958, com o General Humberto Delgado. Até há II Guerra Mundial, apesar de ser um regime repressivo, foi encarado pelas pessoas como o necessário depois da desordem da Primeira República e Oliveira Salazar conseguiu fazer uma política relativamente moderada em confronto com os fascismos italiano e alemão.
Depois da II Guerra Mundial, o regime endureceu. As eleições do Humberto Delgado provocaram uma mudança completa no país e o regime teria caído se não tivesse sido a Guerra Colonial. Curiosamente, as guerras nas colónias salvaram o regime no início dos anos 60 e viriam a ser a causa da sua queda em 74.

Estava no Liceu Camões em 1958…

Ainda estava. Aliás, houve lá um grande comício do Gen. Humberto Delgado com grande repressão policial.

Quando estava na faculdade, considerava-se uma pessoa de esquerda ou de direita?

A minha posição política foi mais ou menos invariável ao longo dos tempos. Eu diria que mais de Centro Esquerda.

Apesar destes tempos conturbados, como conseguiu terminar a licenciatura nos cinco anos?

Eu era um bom aluno, mas não era um grande bom aluno. Fiz o curso com equilíbrio, estudando bem. Mas na altura não tinha pretensões em vir a ser professor.
Com todo o ambiente que se vivia no país, aquilo que eu queria ser era advogado. A imagem que eu tinha era a dos advogados da oposição, a defender os adversários do regime. Era a ideia que eu tinha, que era um pouco romântica e idealista.
Era um bom aluno, mas estava longe de ser o melhor aluno do meu curso. O melhor aluno do meu ano foi o Diogo Freitas do Amaral.

Como era a sua relação com o Freitas do Amaral?

Conhecemo-nos desde o primeiro ano e os laços de amizade ainda hoje continuam.

Ele alguma vez o convidou para o CDS?

Não convidou porque eu já tinha entrado para o PPD.

Como foi parar ao PPD?

Entrei logo no início. Fui um dos fundadores do PPD. Eu tinha sido um dos fundadores da SEDES, ainda antes do 25 de Abril. Foi um movimento importante na altura, dinamizando debates dentro daquilo que o regime de Marcelo Caetano permitia. Eu conheci os deputados da Ala Liberal porque, numa certa ocasião, quando eles estavam a preparar o projecto de revisão constitucional, pediram-me a mim e ao Dr. Riva, que éramos na altura docentes de Direito Constitucional, que fossemos ter uma conversa com eles para, num plano mais jurídico e mais técnico, darmos uma ajuda.
Nessa altura conheci o Sá Carneiro, o Magalhães Mota e o Pinto Balsemão e estabeleci uma relação com essas pessoas. Por outro lado, depois da Revolução, o Partido Socialista apareceu bastante à esquerda e o PPD apareceu como social-democrata.

“Marcelo Caetano era um grande professor, extremamente exigente, mas eu agradeço essa exigência porque foi isso que me fez dar o salto”

Regressando ao tempo de estudante, como se sentiu quando terminou o último exame?

Senti talvez uma certa tristeza, uma certa saudade de deixar de ser estudante. A minha maior alegria, e a grande transformação na minha vida ocorreu mais tarde, quando conclui o então sexto ano, que corresponde ao actual mestrado. Aí é que, sobre o impulso do Marcelo Caetano, que realmente foi o grande professor que me influenciou na faculdade, é que eu comecei a estudar mesmo a sério. O professor Marcelo Caetano foi o meu orientador. Ele era um grande professor, extremamente exigente, mas eu agradeço essa exigência porque foi isso que me fez dar o salto.

Como era a sua relação com ele?

De discípulo para mestre. Ele era uma pessoa já com alguma idade e eu era um jovem de 23 anos. Era uma grande figura da faculdade, e do regime. O sexto ano marcou-me a diferença porque foi aí que eu comecei a pensar em dedicar-me à investigação e ao ensino. A ideia de ser advogado foi sendo abandonada à medida que ia gostando mais de estudar e a oportunidade que eu tive de fazer uma tese sobre Direito Constitucional. E o dia em que terminei o sexto ano, em 1964, é que foi um dia de grande alegria porque tinha descoberto a minha vocação. Afinal não queria ser advogado da oposição mas sim docente e investigador.

Quem lhe deu a descobrir a sua vocação foi o Marcelo Caetano?

Pode dizer-se que sim. Foi de facto uma mudança muito grande.

E como viu a passagem dele para Chefe do Governo?

As pessoas tiveram uma grande esperança nessa altura. Porque pensávamos que não era possível continuar naquele regime, ele era tido como um liberal dentro do regime e, portanto, havia uma grande esperança. Eu devo dizer que dei-lhe o benefício da dúvida e, apesar das minhas relações pessoais ou, digamos, académicas, com ele, não me sentia identificado com o pensamento político dele. Ele subiu ao poder em 1968, havia eleições em 69 e este foi um período de expectativa. Cá para mim, eu pensava: se as eleições forem livres, muito bem, se não forem…infelizmente não foram. Ainda houve uma abertura, com a Ala Liberal, Sá Carneiro, Magalhães Mota, Pinto Balsemão, Mira Guerra, mas depois o regime foi-se fechando, e justamente na altura da revisão constitucional de 1971. Houve uma proposta de lei do Governo, um projecto da Ala Liberal e o projecto do pai do Freitas do Amaral. Mas o Governo, inexplicavelmente, não admitiu que os projectos dos deputados fossem discutidos na Assembleia. Este foi o momento de ruptura…

E foi uma desilusão para si?

A possibilidade que o regime tinha tido de uma reforma por dentro, de aproveitar a Ala Liberal que estava disponível para colaborar, e também o General Spínola que tinha projectos de reforma… Mas Marcelo Caetano, pelo contrário, endureceu perante a posição reaccionária do Almirante Tomás que travava tudo… Marcelo Caetano deixou de ser Presidente do Conselho quando, em 1972, aceitou que Tomás fosse reeleito. Nesta altura tinha-se a consciência que o regime não podia durar e que bastava ficar de braços cruzados à espera que o regime acabasse.

Quando deixou de dar o benefício a Marcelo Caetano?

Acabou em 1969, durou apenas um ano. Como as eleições não foram livres, deixou de se dar o benefício da dúvida. Eu separo o professor, o académico do político, mas eu acho que, em 69, ele perdeu uma grande oportunidade. Até porque, se tivesse havido eleições livres, ele teria ganho. Havia uma grande expectativa, uma grande simpatia por ele no país… Ele teria ganho as eleições. Eventualmente teriam entrado na Assembleia alguns deputados da oposição, o próprio Mário Soares estaria disposto a aceitar uma coisa do género. Mas não, ele endureceu o regime.

Teria havido uma transição para a democracia?

Absolutamente. Teríamos poupado as crises do processo revolucionário, que foi terrível. Teríamos poupado a destruição económica que se deu entre 1974 e 1975. E teríamos feito uma descolonização em muito melhores condições. O General Spínola teria conseguido uma paz negociada na Guiné-Bissau, e o mesmo em Angola e Moçambique. Seria uma solução muito melhor do que a que foi conseguida, que foi um desastre. Um desastre para Portugal, para Angola e para Timor.

Quando terminou o sexto ano, o que fez a seguir?

E 1965 fui com uma bolsa de estudo para Florença, onde estive a estudar Direito. Em Outubro desse ano entrei na Marinha para fazer o serviço militar. Estive de 9 de Outubro de 1965 a 1 de Junho de 1968 na Marinha, quase três anos da minha vida.

E como foi a sua vida militar?

Na fase de instrução, eu também não tenho jeito nenhum para treinos militares, pelo que não fui muito feliz. Mas depois fui colocado na Administração Naval aqui em Lisboa. Foram 25 meses que foram bastante agradáveis. Eram lá colocados os alunos com melhores notas. Conheci lá imensa gente, de diferentes formações. Amaro da Costa, por exemplo, foi um dos que passou por lá, os irmãos Pinto Barbosa… Um conjunto de pessoas com quem criei grandes laços de amizade.
Era um período, ainda antes da queda de Salazar, nós víamos que o regime estava a acabar e fazíamos projectos e sonhos em relação ao futuro. No Ministério da Marinha, numa coisa chamada Casa da Balança, tínhamos estas conversas no fim do almoço. Eram extremamente agradáveis.

Não tinham medo da PIDE?

Dizia-se na altura que em cada cinco portugueses havia um informador da PIDE. Mas ali não. Num café seria diferente. Dentro do ministério nós conversávamos livremente.

E quando saiu da Marinha?

Primeiro, fui assistente no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Estive lá um ano. E depois vim para assistente na Faculdade de Direito, em Outubro de 1969.

Nota: Esta primeira parte, de três, da entrevista (publicada parcialmente na edição de 13 de Agosto de 2008 da revista SÁBADO) foi realizada na Faculdade de Direito de Lisboa, no final de Abril de 2008. Aqui pode ler a versão integral de toda a conversa com o Professor Jorge Miranda, sem qualquer edição posterior.

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